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MAC USP Cidade Universitária
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Classicismo, Realismo, Vanguarda: Pintura Italiana no Entreguerras

Imagens e verbetes




Aldo Bonadei - Natureza-morta,1950 >topo

Com formação clássica na Academia de Belas-Artes de Florença, a aproximação de Aldo Bonadei dos pintores modernos e das teorias do modernismo se deu na volta a São Paulo. Em 1935, o artista instalou seu ateliê no Palacete Santa Helena juntamente com Francisco Rebolo Gonsales, Mário Zanini, Humberto Rosa, Fúlvio Pennacchi e, posteriormente, Clóvis Graciano e Manoel Martins. Teve sua primeira individual em 1944, na Livraria Brasiliense, participou da III Bienal de São Paulo (1953) e fez parte da representação brasileira na XXXVI Bienal de Veneza (1952).

O Santa Helena, de um lado, propiciou a Bonadei uma revisão de sua estética e, de outro, a experiência da produção em coletivo, que tinha como principal liga a valorização do ofício.

Bonadei não abandonou a figuração, mas essa passou a ser concebida através de uma interpretação pessoal, passou a ser forma na tela, e forma geometrizada. Para compreender essa passagem, as naturezas-mortas do pintor são fundamentais. Um dos principais motivos de sua produção, elas assumem o papel de campo de reflexão sobre a prática da pintura, tendo ele exemplares desde os mais clássicos até os mais abstratizantes.

Nessa Natureza-morta está presente justamente a geometrização das formas, simplificadas, determinadas pela linha, cuja cor só reforça, quase que funcionalmente, mantendo-se, todavia, totalmente apreensível o motivo da natureza-morta.

Maria Lívia Góes

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Felice Casorati - Nu Inacabado,1943 >topo

Nascido em Novara, Felice Casorati alcança reconhecimento como pintor com sua chegada a Turim, em 1918. Em 1923 , Casorati abre uma escola de pintura em seu ateliê, num momento em que repensa a pintura metafísica, o legado de Cézanne e se interessa pelo Quattrocento italiano. O rigor formal a que chega nestes anos faz dele um dos artistas representativos das tendências do chamado “Retorno à Ordem”, na Europa. Esse período é marcado por sua sala especial na Bienal de Veneza , em 1924, e sua participação na I Mostra del Novecento Italiano, em Milão, em 1926. Em 1928, sua pintura sofre uma mudança de estilo, que passa a se caracterizar, segundo alguns especialistas, por uma maior pesquisa cromática e um desenho mais fluido. As décadas de 1930 e 1940 são marcadas pelo reconhecimento de sua obra: na I Quadriennale di Roma, em 1931, participa como sala especial e recebe o terceiro lugar na premiação de pintura; em 1941, é convidado a ser professor na Academia de Belas Artes de Turim, da qual se tornará diretor em 1952.

Nu Inacabado parece sintetizar uma série de elementos da pintura de Casorati, sobretudo de sua experiência pós-Mostra do Novecento Italiano e a afirmação de seu estilo autônomo, principalmente no trabalho sobre as camadas de aplicação das cores e sua transparência. Numa conferência proferida na Universidade de Pisa, em maio de 1943, Casorati faz um balanço de sua obra, na qual reforça a importância de sua pesquisa cromática, afirmando-se como um pintor que construiu sua própria linha de investigação da cor: a que busca o realismo. E m sua pintura prolifera m composições com nus, d a s quais ainda maior é o conjunto de estudos. Neles, Casorati afirma serem reconhecíveis os elementos mais vitais de sua pintura. Casorati passou boa parte de sua vida a elaborar figuras femininas nuas em interiores, que a partir talvez de sua Conversação platônica (1925, óleo sobre tela), exposta na I Mostra del Novecento Italiano , são para ele essencialmente um problema de pintura e forma, de investigação de seu estilo, e correm em paralelo à sua produção de naturezas-mortas, como no caso de Natureza-morta com limões, também presente na exposição. O quadro alude, portanto, ao exercício da pintura , e mais tarde desdobra-se em inúmeras versões, que ele retoma até o fim de sua vida, de composições de nus em seu ateliê.

Um dado peculiar de nosso Nu inacabado é que ele carrega uma pintura em seu verso, obra de Daphne Maugham Casorati (1897-1982), mulher do pintor . Inglesa, sobrinha do grande escritor William Somerset Maugham, Daphne é aluna da escola de pintura de Casorati a partir de 1926, tornando-se sua mulher em 1930. A descoberta da pintura de seu futuro marido foi, para ela, marcada por uma grande transformação em seu estilo. Formada no ambiente parisiense dos anos 1910, Daphne havia experimentado a linguagem plástica do cubismo, mas os especialistas tendem a identificar em sua pintura uma enorme afinidade com a técnica impressionista. Os estudos, que estão sendo realizados em colaboração com o grupo de física nuclear aplicada d o Instituto de Física d a USP , puderam elucidar as diferenças de estilo que vemos entre a pintura de Casorati e a de sua mulher, Daphne: detalhes tomados , principalmente na elaboração da fisionomia das duas figuras representadas , revelam como os dois artistas efetivamente procediam de maneira muito diferente.

O que provavelmente teria levado Casorati a reaproveitar uma tela de Daphne talvez tenha sido o incêndio que consumiu o ateliê do artista em 1943, quando ele estava ocupado com uma individual de sua obra recente na Galleria Il Cavallino, de propriedade do então célebre colecionador Carlo Cardazzo, em Veneza . Aqui , ele apresentou um total de 22 obras, dez desenhos e 12 pinturas, dentre as quais expôs nada menos do que nove composições de nus, momento talvez no qual o próprio Cardazzo adquiriu um estudo de nu feminino do artista.

Ana Gonçalves Magalhães

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Achille Funi - A Adivinha,1924 >topo

Funi, ao lado de Sironi, foi o artista que para a crítica Margherita Sarfatti protagonizou a pintura italiana moderna defendida em sua noção de Novecento Italiano, que ela pensou como forma mais legítima de manifestação da nova ordem sociopolítica estabelecida em seu país a partir de 1922. Assim sendo, em seu exílio argentino e na orientação às aquisições do casal Matarazzo, a presença de A Adivinha na lista de obras compradas parece testemunhar o significado que este momento tem na história da arte moderna italiana.

É possível colocá-la no contexto da produção do chamado Realismo Mágico de Funi, entre 1920 e 1924, também momento de constituição do grupo Novecento, em torno de Sarfatti. Nas resenhas sobre sua obra desse período acentuam-se com frequência suas relações com o Renascimento Ferrarês, sobretudo a influência do estilo flamengo no Quattrocento de Ferrara. A composição de Funi para A Adivinha trabalha com alguns elementos canônicos dessas referências: a figura posicionada em ¾, sua estrutura piramidal; a posição dos braços; a relação entre figura e fundo, e a modelação da figura a partir da construção de zonas de luz e sombra. Ele também recupera determinados aspectos da técnica renascentista, tais como a técnica a óleo sobre madeira e uma referência conceitual importante: o quadro é executado em medida áurea. No que se refere à cultura pictórica do Quattrocento ferrarês, os especialistas lembram sempre a relação de Funi com a pintura de Cosmè Tura.

O quadro parece inserir-se na polêmica com o grupo de pintores metafísicos poucos anos antes. Os elementos arquitetônicos ao fundo da composição efetivamente aludem aos pórticos pintados por De Chirico nas suas versões das chamadas Praças da Itália, dos anos 1910-14. Após as análises de raio-x que realizamos recentemente com a obra, de fato vemos um plano de fundo, posteriormente eliminado, que remete à atmosfera das vistas de De Chirico, ao mesmo tempo em que se inspira na cidade ideal renascentista. Ao mesmo tempo, A Adivinha apresenta-se como um exercício de reinterpretação da iconografia renascentista, realizando a noção de síntese, proposta anteriormente por Margherita Sarfatti, que para Funi não significaria a imitação dos mestres renascentistas, mas sim a retomada do caráter arquitetônico da composição, a busca do estilo, a construção formal sólida.

Em pelo menos duas outras obras do mesmo período, o artista articula figuras femininas a partir de um panejamento roxo. É o caso de Cabeça Feminina (Figura, Figura Feminina ou A Irmã), de 1922 (coleção privada, Monza, anteriormente da coleção de Sarfatti). O caráter solene, simples, sintético e construído dessas figuras exprime os elementos que, para Sarfatti, seriam o fundamento de uma pintura italiana moderna, promovendo a síntese entre a experiência vanguardista e a tradição italiana da arte.

Ana Gonçalves Magalhães

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Felice Casorati - Nu Inacabado,1943 >topo

Nascido em Novara, Felice Casorati alcança reconhecimento como pintor com sua chegada a Turim, em 1918. Em 1923 , Casorati abre uma escola de pintura em seu ateliê, num momento em que repensa a pintura metafísica, o legado de Cézanne e se interessa pelo Quattrocento italiano. O rigor formal a que chega nestes anos faz dele um dos artistas representativos das tendências do chamado “Retorno à Ordem”, na Europa. Esse período é marcado por sua sala especial na Bienal de Veneza , em 1924, e sua participação na I Mostra del Novecento Italiano, em Milão, em 1926. Em 1928, sua pintura sofre uma mudança de estilo, que passa a se caracterizar, segundo alguns especialistas, por uma maior pesquisa cromática e um desenho mais fluido. As décadas de 1930 e 1940 são marcadas pelo reconhecimento de sua obra: na I Quadriennale di Roma, em 1931, participa como sala especial e recebe o terceiro lugar na premiação de pintura; em 1941, é convidado a ser professor na Academia de Belas Artes de Turim, da qual se tornará diretor em 1952.

Nu Inacabado parece sintetizar uma série de elementos da pintura de Casorati, sobretudo de sua experiência pós-Mostra do Novecento Italiano e a afirmação de seu estilo autônomo, principalmente no trabalho sobre as camadas de aplicação das cores e sua transparência. Numa conferência proferida na Universidade de Pisa, em maio de 1943, Casorati faz um balanço de sua obra, na qual reforça a importância de sua pesquisa cromática, afirmando-se como um pintor que construiu sua própria linha de investigação da cor: a que busca o realismo. E m sua pintura prolifera m composições com nus, d a s quais ainda maior é o conjunto de estudos. Neles, Casorati afirma serem reconhecíveis os elementos mais vitais de sua pintura. Casorati passou boa parte de sua vida a elaborar figuras femininas nuas em interiores, que a partir talvez de sua Conversação platônica (1925, óleo sobre tela), exposta na I Mostra del Novecento Italiano , são para ele essencialmente um problema de pintura e forma, de investigação de seu estilo, e correm em paralelo à sua produção de naturezas-mortas, como no caso de Natureza-morta com limões, também presente na exposição. O quadro alude, portanto, ao exercício da pintura , e mais tarde desdobra-se em inúmeras versões, que ele retoma até o fim de sua vida, de composições de nus em seu ateliê.

Um dado peculiar de nosso Nu inacabado é que ele carrega uma pintura em seu verso, obra de Daphne Maugham Casorati (1897-1982), mulher do pintor . Inglesa, sobrinha do grande escritor William Somerset Maugham, Daphne é aluna da escola de pintura de Casorati a partir de 1926, tornando-se sua mulher em 1930. A descoberta da pintura de seu futuro marido foi, para ela, marcada por uma grande transformação em seu estilo. Formada no ambiente parisiense dos anos 1910, Daphne havia experimentado a linguagem plástica do cubismo, mas os especialistas tendem a identificar em sua pintura uma enorme afinidade com a técnica impressionista. Os estudos, que estão sendo realizados em colaboração com o grupo de física nuclear aplicada d o Instituto de Física d a USP , puderam elucidar as diferenças de estilo que vemos entre a pintura de Casorati e a de sua mulher, Daphne: detalhes tomados , principalmente na elaboração da fisionomia das duas figuras representadas , revelam como os dois artistas efetivamente procediam de maneira muito diferente.

O que provavelmente teria levado Casorati a reaproveitar uma tela de Daphne talvez tenha sido o incêndio que consumiu o ateliê do artista em 1943, quando ele estava ocupado com uma individual de sua obra recente na Galleria Il Cavallino, de propriedade do então célebre colecionador Carlo Cardazzo, em Veneza . Aqui , ele apresentou um total de 22 obras, dez desenhos e 12 pinturas, dentre as quais expôs nada menos do que nove composições de nus, momento talvez no qual o próprio Cardazzo adquiriu um estudo de nu feminino do artista.

Ana Gonçalves Magalhães

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Alberto da Veiga Guignard - Autorretrato,1931 >topo

De formação europeia partilhada com grande parte dos artistas modernos brasileiros, Guignard retorna ao Brasil em 1929, já tendo participado da XVI Bienal de Veneza (1928), mas com uma bagagem diferente da maioria dos artistas do contexto do segundo Modernismo. Seu referencial traz muito do surrealismo que estará presente em quase todas as temáticas exploradas pelo artista, desde naturezas-mortas, não tão presentes em sua obra, até paisagens e famílias, mais representativas. O retrato, também um dos temas preponderantes na sua produção, é o gênero no qual, ao lado de Portinari, se destaca. Isso talvez faça com que Mário de Andrade o reconheça como uma das revelações do Salão de 1931, mas simultaneamente não lhe conceda o mesmo papel central de Portinari e Segall, que exploram mais questões nacionalistas.

O que se destaca nos retratos é o caráter da personagem retratada, sendo os retratados frequentemente conhecidos do pintor. Os autorretratos, como o de 1931, totalizam cerca de 20, feitos com a mesma acuidade ao se expor que a busca de revelar o outro quando o retrato é alheio, o que o aproxima de Rembrandt, tanto nesse intuito de honestidade, quanto numa possível dificuldade financeira que o impede de contratar modelos. A honestidade se explicita tanto no envelhecimento revelado nas telas, quanto no seu defeito congênito, o lábio leporino, quase sempre presente, e que marcou, profundamente, a personalidade do pintor.

Guignard tem sua produção deslocada do núcleo paulistano, tendo atuado no Rio de Janeiro desde a volta da Europa até ser convidado, em 1944, a lecionar no recém-fundado Instituto de Belas Artes de Belo Horizonte, local onde fez escola legando alunos como Amilcar de Castro, Farnese de Andrade, Franz Weissmann, entre outros. O conteúdo formal do Autorretrato de 1931, todavia, é refletido na sua produção e o aproxima dos paulistanos do Santa Helena. Nele encontramos a expressão da precisão técnica que remete a Tozzi e Campigli, com uma pincelada quase áspera de traços finos e precisos, e do retorno à linguagem realista, ainda que sobre um fundo quase metafísico.

Esse tom metafísico é marcado pelos elementos sintéticos: o mar e a coluna, com um aspecto que remete ao mediterrâneo, que por sua vez, aproximam a obra também de Tozzi, mas ainda de De Chirico (Cavalos à Beira Mar) e Carrà (Depois do Crepúsculo, 1927). Mais uma vez o fundo, de caráter metafísico, mas somado ao próprio recorte da pintura, de um busto, postura clássica dos retratos, por fim, liga a obra de Guignard à Adivinha de Funi.

Maria Lívia Góes

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Mario Mafai - Natureza-morta,1946 >topo

Os temas explorados pela obra mafaiana são os retratos, as séries que representam as demolições empreendidas por Mussolini para obras viárias em Roma, e a natureza morta com flores.

O interesse pela natureza morta certamente advém das possibilidades exploratórias do tema para a exposição da linguagem; não por acaso, é um dos principais temas desenvolvidos por Giorgio Morandi, famoso pintor de naturezas mortas com garrafas de vidro, figuração através da qual desenvolve a pintura metafísica, cuja composição plácida visava expor temas universais (mais que temas, “estados de espírito”), alheios à História dos fatos e dos homens. Dessa forma, De Chirico pregava também o ritorno al mestiere [retorno ao ofício], ou seja, a valorização do suporte pintado (tela - tinta - pincel) próprio do ofício de pintor, e digno expoente da tradição artística por excelência, em oposição às experimentações vanguardistas de novos e inusitados suportes e técnicas (colagem, fotomontagem, etc.).

Mafai dialoga com De Chirico e Morandi ao atuar de forma semelhante, com a eleição da natureza morta com flores, para a sua própria pesquisa estética, em séries que atravessam toda a sua carreira, desde os anos 1930, evoluindo em traços expressionistas nos anos 1940, e chegando às últimas experimentações abstracionistas nos anos 1950.

Em todo seu percurso, observa-se que as primeiras composições desenvolvem-se verticalmente, sendo essencialmente exposições de flores secas; mas a essência do discurso, que vai constituindo-se ao longo dos anos, é a melancolia das flores, como observação da morte, ou seja, vida que se esvai. Mafai está pintando uma cena, ou melhor, a representação de um instante, que se congela e, principalmente se mostra longo, devido à passagem das flores no tempo, ao tempo que levam para secar. Como observa Argan, é um estado de letargia, de quase-morte, ou o longo esmorecimento desde o momento do corte, que as tira da vida (mas não totalmente), até a secura final, onde jazem seus restos mortais, seus esqueletos vegetais já totalmente sem vida; ainda assim, o estado ao qual são submetidas não é agonia, e sim melancolia, ou sono profundo. Este meio-tempo, que é a melancolia das flores, vai sendo captado ao longo dos anos pelo uso de cores, figuração, traço, e composição – arranjo da cena.

Neste exemplar, as flores contêm a melancolia da natureza morta, auxiliada pela paleta adotada, que varia entre o vermelho e o azul, e não carregam consigo o tão retratado calor mediterrâneo do Lácio.

Benjamim Saviani

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Mario Mafai - Natureza-morta,1946 >topo

Os temas explorados pela obra mafaiana são os retratos, as séries que representam as demolições empreendidas por Mussolini para obras viárias em Roma, e a natureza morta com flores.

O interesse pela natureza morta certamente advém das possibilidades exploratórias do tema para a exposição da linguagem; não por acaso, é um dos principais temas desenvolvidos por Giorgio Morandi, famoso pintor de naturezas mortas com garrafas de vidro, figuração através da qual desenvolve a pintura metafísica, cuja composição plácida visava expor temas universais (mais que temas, “estados de espírito”), alheios à História dos fatos e dos homens. Dessa forma, De Chirico pregava também o ritorno al mestiere [retorno ao ofício], ou seja, a valorização do suporte pintado (tela - tinta - pincel) próprio do ofício de pintor, e digno expoente da tradição artística por excelência, em oposição às experimentações vanguardistas de novos e inusitados suportes e técnicas (colagem, fotomontagem, etc.).

Mafai dialoga com De Chirico e Morandi ao atuar de forma semelhante, com a eleição da natureza morta com flores, para a sua própria pesquisa estética, em séries que atravessam toda a sua carreira, desde os anos 1930, evoluindo em traços expressionistas nos anos 1940, e chegando às últimas experimentações abstracionistas nos anos 1950.

Em todo seu percurso, observa-se que as primeiras composições desenvolvem-se verticalmente, sendo essencialmente exposições de flores secas; mas a essência do discurso, que vai constituindo-se ao longo dos anos, é a melancolia das flores, como observação da morte, ou seja, vida que se esvai. Mafai está pintando uma cena, ou melhor, a representação de um instante, que se congela e, principalmente se mostra longo, devido à passagem das flores no tempo, ao tempo que levam para secar. Como observa Argan, é um estado de letargia, de quase-morte, ou o longo esmorecimento desde o momento do corte, que as tira da vida (mas não totalmente), até a secura final, onde jazem seus restos mortais, seus esqueletos vegetais já totalmente sem vida; ainda assim, o estado ao qual são submetidas não é agonia, e sim melancolia, ou sono profundo. Este meio-tempo, que é a melancolia das flores, vai sendo captado ao longo dos anos pelo uso de cores, figuração, traço, e composição – arranjo da cena.

Neste exemplar, as flores contêm a melancolia da natureza morta, auxiliada pela paleta adotada, que varia entre o vermelho e o azul, e não carregam consigo o tão retratado calor mediterrâneo do Lácio.

Benjamim Saviani

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Mario Mafai - Rapaz,c.1935 >topo

A obra é adquirida na Itália em 1946, pertenceu à coleção de Carlo Cardazzo e foi exposta na II Quadrienale di Roma (1935), sob o título Testa di Balilla, embora no Brasil seja inventariada como Rapaz.

Trata-se de um perfil jovial, de um menino de cabelos castanhos, com o uniforme de balilla, sobre fundo esverdeado, olhando fixamente à frente. Podemos inseri-lo em uma temática recorrente na trajetória mafaiana. São conhecidas suas séries de retratos juvenis, feitas na primeira metade dos anos 1930, sendo identificadas tendências a paletas mais avermelhadas, e depois tendências a paletas mais frias. Ainda assim, a suavidade das cores é sempre uma constante.

A obra não é datada pelo autor, mas nela é possível identificar uma série de características que, comparadas a seu trabalho em séries semelhantes, nos dão algumas pistas sobre sua inserção no repertório mafaiano: de antemão, temos a referência da exposição de 1935; além disso, temos também outras obras famosas com a temática pueril, que seguem a mesma linha de pesquisa artística: o retrato de menino e uso de cores em tons pastéis, variando entre a paleta do vermelho e do verde, mas sem uma presença de fundo definido. Estas obras situam-se no início dos anos 30 (Ragazzo con palla e Ragazzo con palla (a terra) – 1932).

Um dos dados mais constantes nessas séries é a composição, que remete à pintura mural do afresco tardo-gótico e renascentista, por exemplo; não se trata, porém, da imitação do afresco, e sim de sua representação na tela, ou seja, da textura pintada.

Com esse dado, é possível identificar a pesquisa mafaiana dos anos 30 (que irá se desdobrar em múltiplas vertentes, nos anos 40), dentro do contexto da Scuola Romana: o olhar se volta à pintura do renascimento ao barroco a partir de Longhi e De Chirico, em processo acompanhado por pintores como Mafai. Sua pintura, especialmente neste período, evoca a pintura mural giottiana e a atividade de pintor como um artífice mais que um artista, evidenciadas nesse trabalho de retratar as texturas do afresco, da parede, da muratura; trabalhando com tonalidades mais do que cores; não definindo o plano pintado. Não é pintura mural, mas a representação da pintura mural em uma tela de tecido, de um modo evidente e constante.

Além disso, é possível identificar referências a autores renascentistas um pouco fora dos ciclos de mestres consagrados pela historiografia da época: sua composição remete aos perfis de nobres pintados, é verdade, por Piero dela Francesca, mas também aos retratos de Gentile da Fabriano, ou aos retratos-medalha, feitos por Pisanello, que evocam uma renascença quatrocentista mais “primitiva”, e menos “consagrada” até então.

É interessante olhar para o Rapaz e ver aí essas diversas alusões aos séculos XIV e XV italianos, e a pintores específicos deste porte. O perfil do menino está visivelmente em diálogo com esse período, e possivelmente interpreta uma historiografia da arte mais além dos grandes ciclos toscanos, apontando leituras de ciclos do norte italiano, em um Mafai que investigava a pintura italiana com afinco e abrangência de fontes/referências, em uma atitude também em protesto ou desacordo com o que pretendia institucionalizar o Novecento Italiano, movimento artístico apadrinhado pelo fascismo, que visava reabilitar e conservar a memória do que considerava a grande arte italiana, compreendida na renascença quatrocentista, entre os grandes mestres toscanos. A polêmica reside na indagação: Mas, por que apenas Giotto, Piero della Francesca, Raffaello, enfim, estes “autorizados” deveriam ser rememorados? Por que não olhar também para outros ciclos, outros mestres de valor, outro Quattrocento? E, mais além – e esta era a grande querela de Mafai com o Novecento –, por que eleger uma arte mais autorizada, mais digna de admiração, que outra(s)?

Benjamim Saviani

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Fulvio Pennacchi - Paisagem com Figuras,1941 >topo

Apesar da formação de Pennacchi ter se dado na Itália, sua terra natal, o artista se alinhava com seu mestre, Antonio Pio Semeghini, passando ao largo do Futurismo, da Pintura Metafísica e daqueles movimentos que buscavam a recuperação de uma visualidade italiana, sobretudo, a partir do Renascimento, como era o caso do Novecento, e aproximava-se mais dos legados impressionista e pós-impressionista.

No Brasil, aonde chegou em 1929 no auge da crise do café, talvez em busca de apoio da comunidade italiana que recebia melhor a arte do “Retorno à Ordem”, Pennacchi foi buscar esse resgate do clássico, no que se aproximou dos demais artistas do Santa Helena, com os quais expôs no III Salão de Maio (1939). Sua primeira individual foi na Galeria Itá (1944), e num estado mais maduro participou da I Bienal de São Paulo (1951).

Diferentemente do Grupo, porém, sua pintura além da forma italiana inclui também uma temática muito ligada ao país de origem, presente no retrato de cenas italianas e na frequência do tema religioso. Cenas dotadas de “brasilidade” como a cena aldeã de Paisagem com Figuras vieram a despontar em suas telas somente por volta da década de 1940, justamente no momento de maior envolvimento com o Santa Helena, mas não permanecem por muito tempo, retornando no fim de sua vida mescladas às italianas.

Pennacchi, além de pintor, foi reconhecido muralista e ceramista. Em praticamente todas as residências que viveu, construiu todo o ambiente de maneira artística, desde a arquitetura até os afrescos e objetos, como que tornando tridimensionais suas telas e tentando reconstruir o ambiente italiano, ou o ambiente de uma Itália idealizada, com ares de brasilidade. Semelhante operação realizou na Igreja Nossa Senhora da Paz (São Paulo).

Maria Lívia Góes

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Candido Portinari - Retrato de Paulo Rossi Osir,1935 >topo

A formação na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) rendeu a Portinari uma bagagem academicista que pode ser encontrada em alguns dos retratos pintados pelo artista especialmente no início de sua carreira. Esse não é o caso, todavia, do Retrato de Paulo Rossi Osir. Executado quando o pintor já havia voltado da viagem de estudos na Europa por ocasião do Prêmio Viagem ao Exterior obtido em 1928, a obra incorpora elementos do modernismo revelando um processo de amadurecimento na produção artística. Porém, o modernismo a que Portinari filiou-se não se confunde com o afã das vanguardas, e se vale justamente daquilo que ele pode extrair dos ensinos na ENBA: o aspecto artesanal da pintura e a recuperação de elementos da tradição renascentista, aliados às mais diversas correntes que o pintor viria a explorar em suas obras, como marcadamente o cubismo e o expressionismo.

Com esse estilo e com a temática da realidade do trabalhador brasileiro é que o artista passou a ser enxergado como um dos maiores representantes do modernismo brasileiro, tendo obras murais, entre outras, no antigo Ministério da Educação e Saúde (1936-1946), na Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso em Washington (1941), na Igreja da Pampulha em Belo Horizonte (1943) e no edifício da ONU em Nova Iorque (1952-1956). A sua retratística, entretanto, tende a ser renegada nas análises da produção do pintor.

Os retratos produzidos por Portinari envolvem tipos populares – talvez os mais próximos de sua produção amplamente divulgada –, familiares e amigos, e membros da sociedade. O Retrato de Paulo Rossi Osir é uma das duas pinturas do amigo, também pintor, com quem Portinari trocou correspondências regularmente sobre suas produções, além de ter exposto conjuntamente e colaborado com as atividades de incentivador cultural de Rossi Osir. Apresenta-se liberto das amarras do academicismo, desvinculado de uma apreensão naturalista e idealizante do retratado. A pintura parece trazer para além da fisionomia do artista, certa interioridade muito mais íntima do que voltada a uma imagem da persona na sociedade. Plasticamente, a fluidez entre a figura e o fundo, delimitada quase que pela própria cor, e não mais dependente da ilusão de volume tradicional, aproxima-se de Semeghini (Retrato di Gianna, 1931), com quem compartilha a transparência cromática, mas pontuada por um traço muito fino e delicado, também presente em Soffici (Processione II, 1933).

O outro retrato de Rossi Osir (Coleção do Palácio da Boa Vista), bem como o Retrato de Mário de Andrade do IEB (ambos de 1935), possui uma tônica menos fluida e mais próxima do Autorretrato, 1931, de Guignard, com fundo que compartilha da linguagem metafísica de elementos sintéticos de Carrà.

Maria Lívia Góes

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Scipione - Oceano Indiano,1930 >topo

Esta obra difere do partido mafaiano em repertório: a cena é algo dificilmente visualizável como concreto. Trata-se de universo onírico, alegórico, metafórico... espaço mental posto em pintura.

De certa forma, remete também à pintura norte-europeia: com os personagens, com a disposição dos objetos, nos remete desta vez ao colecionismo, ao wunderkammer [Gabinete de Curiosidades] seiscentista, típico da pintura flamenga por exemplo. É o olho europeu, perplexo e maravilhado que pela primeira vez volta-se para o misterioso Oriente; a luz, por sua vez, opera na linguagem do chiaroscuro seiscentista, de Caravaggio, Gentilleschi, ou El Greco, estudados por Scipione. É também curiosa a escolha do suporte da pintura: madeira em vez de tela, também evocando texturas e técnicas pretéritas, da pintura de retábulos ou até cenas mais informais dos Seiscentos. Mas, mais do que simples “homenagem” aos Seiscentos, a pintura scipionesca pertence a seu tempo e a seu autor. Oceano Indiano também lida com temas recorrentes em sua obra, como desconforto, culpa e arrependimento (temas pessoais, mas que não deixam de pertencer ao mesmo universo dos Seiscentos, até certo ponto). A consciência de Scipione vive em meio à culpa católica, e o pecado simplesmente pela própria existência humana está presente nesta obra, que condena moralmente, pelo simples fato de existir, qualquer forma de vida, e até nos maiores confins da natureza. É, portanto, aí que se insere o tema do animale in gabbia [animal enjaulado], que pertence tanto ao colecionismo seiscentista, deslumbrado com o Novo Mundo, quanto ao aprisionamento do grotesco, meio homem – meio animal, que não estaria livre da culpa e do pecado original, nem mesmo fora da civilização. Afinal, qual é o limiar entre Paraíso e Inferno, fora da civilização?

Oceano Indiano é um quadro peculiar até mesmo dentro do repertório do autor, capaz de transmitir seu discurso através de melancolia e serenidade quase paradoxais à temática expressionista da qual, ainda assim, não abre mão.

Benjamim Saviani

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Gino Severini - Mulher e Arlequim,1946 >topo

O motivo da Commedia dell´Arte foi frequentemente trabalhado na trajetória artística de Severini a partir de variadas soluções plásticas, sendo um de seus assuntos favoritos. Não é demais lembrar que o artista se colocou na máscara de arlequins e polichinelos diversas vezes e que o quadro que estava em seu cavalete quando faleceu era justamente um arlequim. Léonce Rosenberg, que foi seu galerista por aproximadamente vinte anos, o estimulava concentrar sua produção nele já que a receptividade do mercado era grande e porque o assunto havia se tornado sua “marca registrada”. Duas de suas obras mais emblemáticas com esse tema foram os afrescos para o Castelo de Montegufoni realizados em 1921-1922 e as telas para a Maison Rosenberg de 1928-1929 – todas criações vinculadas ao contexto do “Retorno à Ordem”.

No caso de A Mulher e o Arlequim, vê-se que assim como em Flores e Livros e em Figura com Página de Música do MAC USP, Severini adotou outra gramática em comparação às décadas anteriores, apropriando-se das linguagens desenvolvidas pelas vanguardas artísticas do inicio do século XX. Assim, a solução plástica empregada em A Mulher e o Arlequim dialoga explicitamente com a produção de Henri Matisse já que incorpora um uso abundante de cores, o preto como cor, contornos espessos, elementos decorativos, como tapete, almofada, papel de parede, arabescos, próprios desse repertório. Se nos anos 1910 Severini não havia se sentido atraído pela poética do mestre francês, nos anos 1940 há uma mudança significativa de rumo e suas criações passam a dialogar bastante com as de Matisse. Essa orientação artística pode ser também aferida por seus escritos, como a monografia que dedicou a Matisse em 1944, na qual o resumiu como o verdadeiro “arquiteto da sensibilidade”. Essa fatura alcançada na obra do artista francês era justamente o que Severini buscava para suas próprias criações ao longo desses anos. E foi a partir dessas, que Severini conseguiu realizar uma pintura de alegria e de flexibilidade compositiva, o que no julgamento de Lionello Venturi em 1961, foi a retomada da fantasia tão gloriosa dos anos 1910, após um período menor da arte que realizou no entre guerras.

Renata Dias Ferraretto Rocco

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Gino Severini - Figura com Página de Música,c.1942 >topo

Gino Severini pintou diversas figuras femininas ao longo de sua carreira, desde dançarinas em cabarés na época em que participou do movimento futurista, às bailarinas representadas de forma abstrata ao final de sua vida. Essas duas pontas de sua trajetória artística puderam inclusive ser conferidas pelas obras que o artista exibiu na segunda e quarta edições da Bienal de São Paulo.

No caso de Figura com Página de Música, nota-se que assim como em várias representações femininas feitas ao longo dos anos 1940, Severini dialogou com a poética de Henri Matisse, sobretudo com seu “Período de Nice”, tanto no motivo quanto na solução plástica utilizada. Nessa tela, em que se vê uma figura feminina, muito provavelmente a esposa do artista, Jeanne Fort Severini, com os braços apoiados sobre uma partitura musical dentro de um espaço doméstico, Severini trabalhou com contornos grossos, arabescos ao fundo no papel de parede e uma cortina bem ornamentada. Todos os elementos estão enquadrados em uma cena fechada, num ambiente altamente decorativo, cujo foco principal é justamente a representação feminina, que está quieta e reflexiva. Seu vestido merece atenção especial, pois parece ser um elemento que está fora do tempo, uma vez que não encontra correspondência no tipo de vestimenta da época em que a obra foi pintada. Mas é fato, que pelo efeito que causava plasticamente, a roupa utilizada pelas modelos que posavam para Severini, era algo a que se dedicava, bem como atraia sua atenção em criações de outros artistas, como atesta a anotação que fez ao lado de uma reprodução de La Danse à la Ville de Pierre-Auguste Renoir, em que sublinhou a beleza do vestido representado. Com relação ao uso das cores, percebe-se aqui que Severini trabalhou com cores quentes na figura principal, mas mais rebaixadas e menos vibrantes e puras se comparadas com as criações matissianas.

É preciso apontar ainda que além do diálogo com o mestre francês, há também uma correspondência com parte da produção italiana dos mesmos anos, que retratava constantemente figuras femininas no ambiente do lar, o que se verifica no âmbito da pintura e mesmo em produções de outras ordens, como a impressão de periódicos voltados para a mulher e para a casa, como a Rivista Bellezza e a Stile, entre outras. A atenção que Severini estava dando a esse tipo de veiculação era grande, como pode ser aferido pelos comentários que fez em 1940 sobre as capas de revistas e os desenhos feitos por Achille Funi e Giorgio De Chirico para edições da Rivista Civiltà e Aria d´Italia.

Renata Dias Ferraretto Rocco

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Gino Severini - Flores e Livros,c.1942 >topo

A solução plástica empregada em Flores e Livros foi amplamente utilizada por Severini no início dos anos 1940, como atestam suas obras expostas na IV Quadrienal de Roma em 1943 e em diversas outras exposições na Itália nessa década. Ao observá-la, fica claro que o artista trabalhou com uma linguagem próxima à das vanguardas artísticas do início do século XX, o que neste caso especificamente, seria como uma espécie de recuperação da poética cubista, a qual o artista havia experimentado na segunda metade dos anos 1910, logo após sua participação no movimento futurista. Nas duas décadas que antecederam a elaboração de Flores e Livros, Severini vinha trabalhando a partir de outras orientações, sobretudo em consonância com o espírito do “Retorno à Ordem”, e a partir dos anos 1940 passou novamente a valorizar as experiências vanguardistas. Essa retomada fica evidente em uma carta que Severini endereçou ao artista Renato Birolli em 1942, na qual falava sobre a grandiosidade da obra de Picasso, afirmando que ele era um artista capaz de estabelecer novas condições na arte, cujas invariantes poderiam ser igualmente encontradas no legado de Caravaggio ou de Piero della Francesca. Assim, ainda que estivesse morando na Itália naquele momento, Severini passou a assumir como cânone não mais a linguagem artística dos mestres do Trecento ao Cinquecento, como havia feito no entre guerras, mas aquela que havia testemunhado e experimentado nos anos 1910 na França.

Nesse sentido, é interessante observar as duas naturezas-mortas pertencentes ao MAC USP, pois elas são justamente o reflexo dessa mudança de rumo artístico de Severini nas décadas de 1930 e 1940. Em Flores e Livros, vê-se uma composição menos rígida, elaborada a partir de pinceladas mais coloridas e soltas, que sugerem movimento e fluidez. Há sombras estilizadas à moda cubista, em contraste com um fundo bastante decorativo. Não há algo de metafísico ou o que o artista chamava de “realismo transcendental” (em referência às criações dos anos 1920 e 1930), pois nesta obra ele operou com o instante presente, reencontrando – em suas palavras – a vida e a expressão.

Renata Dias Ferraretto Rocco

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Gino Severini - Naturexa-morta com Pomba,c.1938 >topo

Em 1935, na II Quadrienal de Roma, Severini foi agraciado com o disputadíssimo prêmio de primeiro lugar de pintura com sua sala individual, que continha trinta e seis obras. Com essa recompensa, foi possível ao artista, que estava baseado na França havia anos, retornar à Itália em grande estilo. Dentre as doze naturezas-mortas que foram expostas nessa quadrienal, há pelo menos duas cujas soluções plásticas empregadas são muito semelhantes à desta Natureza Morta com Pomba. Elas possuem uma composição rígida, estática e solene. Os objetos representados, recolhidos da coleção pessoal do artista, estão devidamente posicionados de modo a sugerirem uma estrutura harmônica baseada nas relações geométricas, o que é compreensível se considerarmos que nos anos 1920 e 1930, Severini acreditava que a arte só poderia ser universal se estivesse fundamentada nas leis do número. Percebe-se uma nota metafísica nelas, cujos elementos não estão circundados por nada, e a bandeja sobre a qual os objetos se encontram parece flutuar, fazendo com que não haja sugestão de espacialidade. A paleta de cores foi reduzida, e seu uso, absolutamente controlado, pois o que importava ao artista, sobretudo naquele momento, era a força do desenho. Assim, não há resquício algum da abundância e da vibração das cores de seus trabalhos futuristas, o que só seria retomado com afinco por ele nos anos 1940 em diante. A presença das pombas e das uvas aqui também toca em um aspecto importante, uma vez que evoca a questão da religiosidade, algo essencial para o artista e que também estava na ordem do dia no período entre guerras. Nesse sentido, a ascensão de uma figura como o filósofo francês neotomista Jacques Maritain, grande amigo de Severini, comprova isso.

É interessante refletir sobre o gênero natureza-morta no contexto geral da produção de Severini, pois se Natureza Morta com Pomba e as obras semelhantes realizadas na década de 1930 podem ser entendidas como representantes da sua vasta produção desse motivo em consonância com o espírito artístico do ambiente do “Retorno à Ordem”, nas décadas seguintes, elas assumem outras feições, já que há uma reaproximação com as vanguardas artísticas do inicio do século XX. No caso de suas criações do início dos anos 1940, percebe-se claramente sua relação com o cubismo, e do final desse decênio, com o abstracionismo. Como disse Lionello Venturi na monografia dedicada a Severini em 1961, a partir de suas naturezas-mortas pode-se ver nitidamente a mudança gradual do estilo do artista ao longo das décadas.

Renata Dias Ferraretto Rocco

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Paulo Rossi Osir - Velha Onte,1927 >topo

A formação erudita e clássica de Rossi Osir, exaltada por críticos como Sérgio Milliet e Mário de Andrade, está intimamente ligada a seus estudos na Europa, sobretudo na Academia de Brera, em Milão – onde se formou em arquitetura. Em 1920, trouxe ao Brasil a Exposição de Arte Italiana, assumindo também o papel de agitador cultural, responsável por mostras coletivas como o Salão Paulista de Belas Artes (1934), além da promoção artística dos grupos Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM), Família Artística Paulista (FAP) e Grupo Santa Helena, até o ápice com a Osirarte, ateliê de azulejos artísticos onde Rossi Osir não só realizou obras dos modernos Lucio Costa, Niemeyer, Portinari e Burle Marx, como também empregou artistas como Volpi e Zanini. O “retorno à ordem”, em diversos graus, está presente não só na sua produção, mas na daqueles que Rossi Osir – enquanto incentivador cultural – trata de promover. A produção do próprio artista aproxima-se ao Novecento Italiano.

A linguagem moderna se insere em sua obra através da lição de Cézanne, e é presente especialmente nas suas paisagens, para o que foram fundamentais seus estudos com Donato Frisia em 1924. Fruto dessa nova abordagem da pintura, a óleo e não mais aquarela, e investigativa da natureza é a obra Velha Ponte, de 1927. Nela podemos notar a prevalência da paisagem-vegetação, que ocupa praticamente toda a tela, delineada pela própria pincelada e cor transposta ao suporte, ou seja, sem a presença do desenho preliminar ou da construção de perspectiva, mas da própria paisagem, que vai se mostrando no ato direto da pintura. Mesmo a linha do horizonte estabelecida pela ponte integra naturalmente o conjunto, não fazendo parte de uma pré-concepção, e sim de uma apreensão do todo.

O quadro foi adquirido da viúva de Rossi Osir, Alice Rossi, no contexto da VII Bienal de Arte de São Paulo (1963), quando o recém-fundado MAC USP começava a se ocupar do desenho de um acervo próprio. À época foi apresentado na sala hors-concours dedicada ao pintor sob o título de Olivais, Cervo Lígure. Esse título, que revela a inscrição do canto inferior direito da tela abaixo da assinatura, todavia, seria um indicativo do local onde fora pintada a obra, executada no último período do pintor na Europa (entre 1924 e 1927). Em sua primeira apresentação, na III Exposição do Pintor Paulo C. Rossi em São Paulo (1927), o pintor atribuiu à mesma o título de Velha Ponte. O título original acrescenta-se a uma aproximação já técnica e temática da referida obra com a de Arturo Tosi, Ponte de Zoagli. Rossi Osir compartilha com Tosir o que seria mais típico ao Novecento: a linguagem clássica do Renascimento como referencial estilístico, mas, sobretudo, ainda que esta não se possa identificar com o movimento de origem italiana, ambos são seguidores da lição de Cézanne. A expressão derivada do pintor francês talvez esteja mais explícita na Ponte de Rossi Osir, onde a natureza parece tomar conta de todo o quadro, quase que por vida própria, enquanto na de Tosi ainda se encontra de certa forma limitada ao contorno do desenho. Outras paisagens do italiano, especialmente de Val Seriana, porém, dão conta da lição de Cézanne de forma mais próxima à de Rossi Osir, como em Paisagem de Val Seriana e Paisagem, 1946.

Maria Lívia Góes

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Mário Zanini - Canindé,c.1940 >topo

O pintor de origem proletária aprimorou-se nas aulas noturnas de desenho e artes no Liceu de Artes e Ofícios, e embora desde 1923 se dedicasse a pintura em cavalete, somente na década de 1930 conseguiu dividir com Rebolo uma sala que destinou a ser seu ateliê, no Palacete Santa Helena. Nessa mesma década, participou da primeira exposição coletiva, o Salão Paulista de Belas Artes de 1934. Individualmente, expôs em 1944, na Livraria Brasiliense, mas não se dedicou à autopromoção.

Sua expressão plástica reflete de sua trajetória, tanto na temática escolhida como na linguagem adotada. Como seus companheiros santelenistas, Zanini não abandonou a figuração mesmo em suas incursões pelo abstracionismo, e os motivos por ele explorados eram os que o circundavam: várzeas, zonas ribeirinhas, toda uma iconografia dos humildes e seus espaços transposta de maneira íntima para a tela.

A linguagem que irá expressar essa realidade, por sua vez, se modifica conforme os estudos do pintor. Com formação técnica, mas sem contato direto com as vanguardas artísticas, Zanini alinhou-se ao modernismo mais “comportado” do entreguerras, e se em suas pinturas são notáveis traços do impressionismo e do expressionismo não é por filiação direta a essas Escolas. Sua linguagem artística assemelha-se àquela do grupo Corrente, formação de artistas italianos em oposição ao conformismo do Novecento, ao regime fascista e aos problemas formais da abstração, unidos por um expressionismo inicialmente lírico, mas cada vez mais realista, definido pela cor, a luz e a expressão de dramas e paixões da existência.

Com eles partilha a característica de grande colorista, que notamos na obra Canindé, bem como a gestualidade das pinceladas, característica do expressionismo apropriada pelo pintor, que com proximidade afetiva retrata uma cena cotidiana dos arredores do Tietê, cotidiano que ele partilha, e a construção da perspectiva a partir do próprio desenho que, por sua vez, se constrói pela pincelada e pela cor, mas sem perder seus contornos.

Maria Lívia Góes

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